quinta-feira, 12 de julho de 2007

A Memória como uma Biblioteca Virtual

Paula Maria Prado
Joanna Brandão
Uma crítica publicada na revista VEJA dessa semana chamou-nos atenção pelo assunto inusitado: Pierre Bayard, um psicanalista francês, escreveu um livro cujo nome é Comment Parler dês Livres que l’On n’A pás Lus? (Como Falar dos Livros que Não Lemos?). De fato, o livro parece um manual de “malandragem” para as pessoas se saírem bem quando são questionadas sobre um determinado livro não lido. Porém, de acordo com a crítica, trata-se de um “ensaio inteligente sobre as várias formas de apreciar um livro”.
Entretanto, o que mais nos chamou a atenção foi a comparação do autor afirmando que a memória é uma biblioteca virtual. E ele está certo. Nossa mente funciona como os mecanismos da internet. Cada leitor carrega consigo um repertório de livros e conhecimentos que permite contínuo acesso. Quando nos falam a palavra “Macunaíma”, por exemplo, realizamos uma busca mental e, logo, nos vem a descrição do “herói sem nenhum caráter”; se nos aprofundarmos, teremos também a imagem de Grande Otelo no filme, e sua eterna moleza: “Ai que preguiça...” e, se o sucesso da busca for absoluto, lembramo-nos que o autor da obra é Mário de Andrade e que esta foi escrita em seu período Modernista.
Nossa memória é como um hipertexto em constante atualização e expansão. Afinal, todos os conceitos e conhecimentos que possuímos guardados em nossa mente, estão conectados. Para nos encaminharmos para um ou outro, tudo dependerá de nossa necessidade no momento, da associação que fizermos. Assim, podemos percorrer diferentes caminhos, sendo nós mesmos os responsáveis pela criação dessas trilhas, conforme nosso repertório.
Sendo a memória como uma rede de informações, com suas interligações, sempre apta a novas informações, tal como a internet, ela também pode falhar. Quem nunca se atrapalhou com os personagens de uma obra? É uma confusão de nomes... Dom Casmurro e Brás Cubas, Luisa e Amélia, Aurélia e Adelaide...
Enfim, as conexões que fazemos, muitas vezes errôneas, nada mais são que hiperlinks desviados. E ler ou não determinado livro, é um processo essencial para a manutenção dessa rede. Como Bayard disse: “para ler o bom, uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos”. O livre arbítrio na escolha das leituras é o que sustenta a rede de informação.
É ilusão achar que se pode ler e armazenar tudo, enquanto estamos na terceira página do livro, já esquecemos os detalhes da primeira. Por isso, um arquivo que auxilie na busca dessa contingente de informação se faz necessário. Não é a toa que muitas pessoas carregam agendas e a consultam hora a hora durante o dia. A internet, com seus mecanismos de busca, links e mais links com novas informações, mantém como forma de “organização” sites de assuntos específicos, que inclusive podem ser encontrados em sites de busca. Infelizmente nossa mente ainda não se organizou em claros sistemas organizacionais, temos ainda que recorrer a lembretes e diversas outras formas de dados para nos lembramos de afazeres, de nomes ou, simplesmente, de dados do nosso repertório.
Quando nos perguntam o que achamos de determinado livro, mesmo que tenhamos lido, não falaremos da obra em si, mas de uma lembrança dela que está em nossa mente. E é baseado nesse conceito que Bayard faz a defesa de seu livro. Há macetes explicados para o leitor não passar vergonha admitindo que não lembra do conteúdo de um livro, ou mais, como sugere o titulo da obra: que nem tenha lido a obra. Esses macetes vão de falar do livro com convicção a discorrer sobre a importância que o livro tem em sua vida. Em último caso, o autor sugere que invente episódios, capítulos ou até falar de autores e livros que não existem.
De fato, se um livro foi largado pela metade ou apenas folheado, ele já faz parte do repertorio do leitor, afinal já foram criados links em sua biblioteca virtual, sua memória. Criticas, comentários e resumos ajudam a compor uma idéia sobre a obra. O livro de Bayard causa controvérsias, pois falar de algo que não se conhece por inteiro é sempre um risco, entretanto, como o próprio escritor defende, ninguém precisará ler seu livro para já ter uma opinião a seu respeito.

Características do Hipertexto

Segundo Heim(1993), o hipertexto é um modo de interagir com textos e não só uma ferramenta como os processadores de textos. Por sua característica, o usuário interliga informações intuitivamente, associativamente. Assim como em nossa mente, onde também ocorre interação entre as velhas informações já absorvidas e as novas informações vindas de fora (leituras, outras pessoas, experiências, etc.).
Através de saltos - que marcam o movimento do hipertexto - o leitor assume um papel ativo, sendo ao mesmo tempo co-autor. Em nossa memória também realizamos esses saltos, a todo o momento, quando buscamos informações específicas.
Para Ted Nelson, o hipertexto possibilita novas formas de ler e escrever, um estilo não linear e associativo, onde as noções de texto primeiro, segundo, original e referência caem por terra. Em nossa mente, também não existe uma ordem pré-estabelecida das informações armazenadas.
Para Lévy (1993) o hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos, seqüências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos.
Dessa forma, tanto o hipertexto como a memória são os conjuntos de informações, podendo ser textuais, sonoras, e combinadas com imagens (animadas ou fixas), organizadas de forma a permitir uma leitura (ou navegação) não linear, baseada em indexações e associações de idéias e conceitos, sob a forma de links. Estes agindo como portas virtuais que abrem caminhos para outras informações.

Personagens perdidos na memória

Calma, se você já está confuso (ou sua “busca não funcionou direito”), nós esclarecemos: Dom Casmurro é o nome de um romance de Machado de Assis cujo personagem central é Bentinho (também conhecido como Dom Casmurro por sua reclusão), e Brás Cubas é o defunto de Memórias Póstumas de Brás Cubas que para distrair-se da monotonia da eternidade, escreve suas memórias com a “pena de galhofa e a tinta da melancolia”.
Luisa e Amélia são personagens de Eça de Queirós, porém, a primeira é a ociosa e sonhadora protagonista de Primo Basílio; e a segunda, a uma jovem beata de O Crime do Padre Amaro. E, por fim, Aurélia e Adelaide são, respectivamente, a moça pobre que herdou uma grande quantia de dinheiro e a moça rica, do livro Senhora, de José de Alencar.

A memória humana e a memória virtual

Segundo João Messias Canavilhas, em seu artigo “A Internet como Memória”, a memória, assim como a web, perde informação, embora acabe por manter sempre uma ténue ligação que poderá, em determinadas situações, permitir a recuperação da informação. No caso do Google, essa ligação é a referência que nos é oferecida na pesquisa, que prova a existência da página, mas não nos permite recuperar a informação.
O autor também defende a idéia de que a catalogação é outro ponto em comum entre a memória na web e a memória humana. No caso da web a organização - catalogação - é feita por palavras-chave. A pesquisa é efetuada por comparação entre a palavra introduzida no campo da procura e a existência dessa palavra num dos campos definidos para pesquisa: url, texto, título, domínio, etc.
No caso da memória humana a catalogação é feita a partir da informação recolhida pelos sentidos que funcionam como interface. ``Ali (na memória) estão arquivadas, de forma distinta e classificada, todas as coisas que foram introduzidas cada uma pela sua entrada: a luz e todas as cores e formas pelos olhos; todas as espécies de sons pelos ouvidos; todos os odores, pela entrada do nariz; todos os sabores, pela entrada da boca; e, pelo sentido de todo o corpo, o que é duro, o que é mole, o que é quente ou frio, o que é macio ou áspero, pesado ou leve, quer exterior, quer interior do corpo.'' [S. AGOSTINHO 2001; 242]

Nenhum comentário: